sábado, 18 de agosto de 2007

Artigo de Opinião da Dra. Maria José Nogueira Pinto no DN de 16/08/2007


TERRA DE RAINHAS


Maria José Nogueira Pinto

Jurista

Óbidos fez parte da geografia da minha infância. Foi, provavelmente, a primeira incursão "erudita" em terras portuguesas, incursões que fiquei a dever às "voyages avec ma tante", uma tia especialmente talentosa que contava a História como a grande narrativa de todas as histórias com que se entretêm as crianças, pairando entre o real e o lúdico, o gosto da cronologia e o fascínio da intemporalidade.Óbidos, como se sabe, presta-se a isso mesmo, ao ter atravessado, imperturbável e imperturbada, séculos de vivência humana, protegida das malfeitorias próprias e todas as formas de exercício do poder, graças ao bom senso e teimosia de alguns.Recordo-me bem dessa terra "dormida", as igrejas riquíssimas mas penumbrosas, os quadros da Josefa de Óbidos escurecidos por falta de restauro, o casario fiel à sua traça primitiva mas já com evidentes sinais de decadência, as muralhas e o castelo ameaçados, um comércio esquecido no tempo, indiferente tanto ao nativo como ao turista ocasional, o artesanato pobre e, para além da pousada, uma hotelaria e uma restauração incipientes.Ali mesmo ao lado, Caldas da Rainha era uma cidade animada por cafés, esplanadas, comércio, mercados, museus, livrarias, as termas, o parque com os seus cortes de ténis, a fábrica do Bordalo e as cavacas.No pós-25 de Abril acompanhei, como residente sazonal desta região, o percurso das duas terras. Mais tarde fui, com orgulho e gosto, deputada à Assembleia Municipal das Caldas. A comparação entre Caldas e Óbidos era recorrente e não escondia uma certa competição. Dizia-se que em Óbidos pouco se estragava porque pouco se fazia e contrapunha-se a aparente dinâmica de desenvolvimento das Caldas. Esta discussão estéril escondia o essencial: o desafio que já então se colocava a muitos concelhos de Portugal, traduzido na equação complexa de abrir aos novos tempos, preservando as raízes e reforçando a identidade distintiva de cada um.Também aqui se podia aplicar, com sabedoria, a impressionante máxima do príncipe de Salina, o Dom Fabrizio do Gattopardo de Tomasi di Lampedusa: "Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude."No caso de Óbidos, a abertura às exigências dos novos tempos constituía um risco manifesto, só contornável com rasgo e visão acrescidos, dadas as exigências específicas de um território marcado pela força da sua História e a riqueza do seu património. E sabemos bem, é visível por todo o País, o peso das feridas provocadas por um deturpado conceito de desenvolvimento e uma má interpretação da modernidade: turismo massificado, lixo, excesso de ruído, trânsito e mesmo algum vandalismo consentido como um inevitável preço do progresso.Mas não tem porque ser assim. Em Óbidos, o que aconteceu nos últimos anos está entre o milagre e o study case, com resultados extraordinários: um terra igualmente bonita e harmoniosa, um espaço reforçado na salvaguarda do seu património que convive, agora, com as pessoas, residentes e visitantes, portugueses e estrangeiros, das mais diversas origens e condições, que ali afluem pelos mais variados motivos. E é por isto mesmo que o comércio se tornou atractivo, com horários alargados, uma hotelaria e uma restauração que rivalizam em qualidade, e a atractividade de Óbidos se desmultiplica em programas ambiciosos e bem sucedidos de animação cultural, para todos os públicos, desde feiras medievais a semanas de ópera, desde a encenação da Semana Santa à festa do chocolate, desde exposições a concertos.Infelizmente, Caldas manteve-se nesse aparente desenvolvimento, assente numa gestão urbana de obra pública duvidosa e empreendimentos imobiliários. As enormes potencialidades das Caldas e das suas gentes estão embotadas por uma condução sem estratégia nem rasgo da sua edilidade. Valem-nos os que ainda lutam, mantendo nichos de qualidade. Esperemos que resistam até que cheguem melhores dias. Esta terra merece-o. E eu sei que sim.

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